Os Imortais

O Covid-19 chegou a Portugal com pezinhos de lã. Mas depressa as piadas que todos fizemos, sobre o estupor do Coronavírus, foram perdendo a graça à medida que o medo, justificado, diga-se, tomou conta das nossas vidas e dos gestos quotidianos.
A mim, caiu-me a ficha quando dei pelo meu posto de trabalho instalado na mesa da sala, quando chamar pela filha em casa pode interromper uma aula via Skype, e quando o Skype passou a ser o meio de falar com as pessoas que encontrava todos os dias no trabalho. “Vamos tomar café?!”. O convite era rotina matinal que se repetia à mesa do Café Municipal, rotina a que agora se acrescenta “liga a tua máquina que eu ligo a minha”...
Estamos privados das nossas pessoas, e bem, porque o impõe esta ameaça dissimulada, que entra sem bater à porta. Senta-se à mesa, come e dorme, sem ninguém dar conta, até que é proprietária da casa. Uma espécie de usucapião! Fica e usufrui até poder considerar seu o corpo em que se alojou discretamente.
Domingo foi Páscoa. Sábado foi dia de fazer os doces. Fizeram-se. Mas, desta vez, não para partilhar com a família, depois de uma almoçarada. Decidimos levá-los, ainda assim, porque afinal era Páscoa. Ficamos do lado de fora, e eles do lado de dentro. Falámos, acenámo-nos, e escusado será dizer que todos chorámos.
Entretanto, ontem o meu pai fez anos. Cantamos-lhe os parabéns pelo telefone, com a promessa de nos vingarmos numa festa decente assim que for possível.
Hoje de manhã tive que sair de casa para comprar bens essenciais. Meio parque de estacionamento cheio, ainda antes do supermercado abrir. Normal (nas actuais circunstâncias), porque o consumo é inevitável. Uma fila interminável de pessoas, garantindo a devida distância de segurança. Normal (nas actuais circunstâncias), porque o supermercado impõe restrições na lotação da superfície. Pessoas com máscara, outras sem. Umas com luvas, outras sem. Algumas, demais, diria eu, sem luvas, sem máscara, aos pares, como se este fosse o tempo da normalidade… Quase todas do grupo de maior risco, acima dos 65 anos. Não percebo! Fiz a viagem de regresso a casa a pensar: “mas o que é que lhes vai na cabeça?”. E depois percebi, são imortais!

 

Sandra Ribeiro Gonçalves 

Diretora do Jornal O Povo Famalicense

 

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